sábado, 18 de julho de 2020

Amoras, biscoitos de polvilho e contos da Carochinha


A casa de meus avôs não tinha banheiro, nem água encanada. O chão era de terra batida e a iluminação feita com lamparina. No fundo do quintal, existia um pé de amora gigante, onde vovô instalou um balanço. Quando a gente balançava, as amoras caiam. Doces e vermelhas.  Sendo criança, sentia falta da televisão, em compensação, havia os biscoitos de polvilho sequinhos que só a vovó sabia fazer. E, além disso, podia ir a venda comprar suspiro com vovô, na garupa de sua bicicleta. Em Itumbiara, nos anos 70, a vida passava devagar. Fordinhos cruzavam as ruas, levantando  poeira vermelha que coloria a frente das casas.  

Até hoje, quando degusto uma amora, lembro com saudades daquela casinha simples, onde a gente tomava banho na bacia e, à noite, quase no escuro, vovó contava histórias: “A festa no céu”, “A bela e a fera”, “João e Maria”... Ela era uma ótima contadora de histórias! Algumas são contos conhecidos, da Carochinha, outros ela inventava, como o do cavalo que trabalhou na roça até ganhar alforria. 

- Não sabia que animais ganhavam alforria,  vovó!

- Naquele tempo falavam assim. 

Era um dos poucos animais da fazenda, por isso tudo sobrava para ele: carregar água, sacos de arroz e feijão, barro para erguer a casa... Tudo era com o pobre animal. Quando ficou velho, quase o couro e o osso, sem forças para puxar a carroça, soltaram-no no pasto. Finalmente, estava livre para ir para onde quisesse, para viver seus últimos dias. Mas a liberdade durou pouco. Os ciganos o mataram para comer. Vovó ouviu o tiro e viu quando cortaram sua carne. Para ela, a vida era ingrata como tinha sido com o cavalo. A labuta e o trabalho diário não eram sinônimos de recompensas futuras. Havia apenas o acaso.     

Suas histórias entretinham os filhos nas noites escuras do sertão goiano, quando não havia nada para comer. Apesar de meu avô ser proprietário de fazenda, não sabia plantar. Não tinha dinheiro para possuir gado. Vivia do que a roça lhe dava e era pouco até mesmo para alimentar os filhos. Por isso, minha avó entrava no mato a procura de ervas, raízes, qualquer coisa que disfarçasse a fome enquanto o arroz e o feijão cresciam e o pomar preparava seus frutos. A casa era erguida com barro e madeira, chamada casa de pau-a-pique. Dos galhos das árvores faziam jiraus para guardar panelas e camas para os filhos. À noite o vento atravessava a casa. As cobras passavam pelos paus. Mas vovó que contava histórias também sabia matar cobras. 

Minha avó só veio a possuir uma televisão quando se mudou para Goiânia, nos anos 1980. Era uma TV preto e branco, onde eu assistia Snoppy, adolescente, comendo biscoitos de polvilho. Impossível descrever o prazer de deitar no sofá, pequeno e estreito, colocar uma bacia de biscoitos no colo, sentir o cheiro da terra molhada lá fora, um friozinho enquanto divertia-me com os desenhos do Snoppy. 

Naquela época, eu queria ser comunista. Meu pai discutia constantemente comigo. Minha mãe achava que eu estava enlouquecendo e, para ter paz, fugia para casa da vovó. Com meus últimos trocados pegava o ônibus Vila Canaã e ia me esconder na sua casa. Ela adorava quando me via chegar:

- Brigou com sua mãe de novo! O que foi desta vez?

- Ela acha que estou ficando maluca porque lhe disse que sou comunista. 

- E você é?

- Sim, claro! Sou comunista!

- O comunismo fez muita guerra no interior de Goiás. Seu tio serviu na guerra. Viu muita gente morrer. 

- Qual guerra? Segunda Guerra mundial? Meu tio foi para guerra? Europa?

- Não, nunca saiu do Brasil. Participou de uma guerra que teve no Brasil mesmo. 

- Vovó, o Brasil nunca teve guerra. A guerra para qual o Brasil enviou soldados foi a Segunda Guerra Mundial. 

Somente na universidade descobri que ela estava certa. Até hoje tenho dúvidas, mas acho que se referia a Coluna Prestes. Não soube me contar de que lado meu tio lutou, nem se era ou não era comunista. Tampouco porque foi à guerra correndo o risco de morrer se não era obrigado. Repeti a pergunta muitas vezes, sem resposta. Apenas me disse que ele voltou triste e desalmado. Não quis saber da cidade, da civilização. Se enfiou na fazenda de onde nunca mais saiu.  

Para o sertanejo, as disputas políticas do país eram incompreensíveis. Nem decorridos muitos anos, saberia explicar. O mundo urbano e o rural eram completamente divorciados. Vovó não acreditava nem mesmo que o homem havia pisado na lua. Por isso, nunca discuti política com ela. Quando estávamos juntas, queria ouvir suas histórias, que descrevesse Goiás de antigamente, que me ensinasse a plantar, a fiar e a cardar, a fazer doce de leite no tacho e pamonha. E que me deixasse tomar café em uma de suas xícaras! 

Vovó tinha uma coleção de xícaras e bules. Aquele foi o máximo do consumismo que a modéstia de sua vida lhe permitiu. Eram louças baratas, daquelas que se compram em vendas, feiras, supermercados... Sempre que encontrava uma xícara bonita, aumentava a coleção. Às vezes, o dinheiro não era suficiente para adquirir o jogo inteiro, levava ao menos uma peça. O objetivo não era servir, mas expô-las no armário. Com suas várias xícaras, bules, pires e copos, de cores e estampas diversas, o armário era uma contradição em sua vida franciscana. Não comprava nada para si. Seus vestidos eram simples, de corte reto, feitos em tecido de algodão, com pequenas estampas, quase se repetiam. Usava sempre uma chinela Havaianas e não me lembro de vê-la calçar uma sandália. O que de supérfluo se permitia, o único mimo, era mesmo as louças. 

- Vovó, eu posso pegar uma xícara de sua coleção para tomar café? e ela abria o armário para que escolhesse. 

- Quando eu morrer, vou deixar minhas xícaras para minhas netas. Vocês dividam entre vocês. 

- Você podia dividir antes – ponderou minha prima. Porque nós não queremos que você morra. 

Na verdade, vovó nunca partiu. Ficou num cantinho de nós. Ainda hoje, quando vou ao supermercado, paro em frente às gôndolas onde ficam expostas as xícaras e termino comprando uma. Escolho a que possui gravuras e cores doces e românticas como eram as suas. Algumas estão estampadas com flores do campo iguais as que ela plantava em frente à casa da Vila Cannaã. Não sei como conseguia cultivar tantas e que florescessem ao mesmo tempo. Criança, eu andava entre elas, colhia-as e colocava-as num vaso, no armário, ao lado das xícaras.  

Quando vovó estava próxima de morrer, eu tive um sonho. Estávamos no alto de uma colina e ela apontou para uma plantação de lírios brancos, muito diferentes das flores do campo que costumava plantar. Comentei o quanto eram bonitos, mas ela virou-se e pediu que eu olhasse para o outro lado: 

- Antes de chegar a essa plantação, vou ter que cruzar todo aquele desfiladeiro. 

De fato, vovó sofreu muito antes de morrer. Um sofrimento que eu não suportei assistir. Nos seus últimos dias, não fui a sua casa. Queria guardar a lembrança das bacias de biscoito de polvilho, de suas histórias, das xícaras coloridas, do cheiro de terra molhada e das flores do campo. Não a vi morrer. Nos encontramos recentemente, antes do vovô também partir. Veio me visitar em sonho. Vestia um dos seus vestidos de algodão, com pequenas rosas azuis e amarelas. 

- O que está fazendo aqui?

- Eu vim ver seu avô. Visitar a família. Estava com saudade.

Sorrimos. Nos abraçamos. Conversamos muito. Vovô morreu alguns dias depois.

sábado, 27 de fevereiro de 2010

Mudar, mudar e mudar

Vovó teve maleita, também conhecida por malária. A vítima é acometida por uma febre muito forte e leva muito tempo para se recuperar. Vovó teve maleita enquanto mudava-se de uma fazenda para outra atravessando o sertão goiano. Não sei por que meu avô recebia tantas fazendas de herança, tampouco o que foi feito delas. Sei que sua vida era mudar-se de um canto a outro. Quando ele amansava o mato, colhia a primeira produção de arroz e feijão, e a horta da vovó começava a prosperar, já era hora de mudar.

Botava tudo, que não era muito, no carro de boi e rumava para o próximo nada. Minha avó enchia-se de antipatia por meu avô. Por que não dizer não? Por que? Pelo menos uma vez, não? Mas ele era incapaz de contrariar seu pai. Não era só isso, gostava daquela aventura de não ter rotina, não ter parada, de enfrentar o desconhecido. Achava também que mulher não devia discutir com o marido, nem era para se preocupar. Deixasse com ele. Minha avó resumia o seu desatino numa palavra só: ignorância. “Seu avô era um ignorante!!!” – me disse com ódio várias vezes. Seu sentimento estendeu-se para os filhos: minha mãe não perdoa meu avô até hoje.

Não fazia sentido, naquela época, tomar posse de uma fazenda, não fosse apenas para dizer é minha. Terra em Goiás não valia nada. Não era possível plantar, pois não havia sequer arado. Não era possível escoar a produção, pois não existia estrada. A única opção era a pecuária extensiva, mas minha família nunca teve dinheiro para investir em gado. Não sabia o que era poupar, acumular riqueza. Não sabia o que acontecia no mundo depois que terminava a mata: quem era o presidente, o que se comia, o que se vestia?... Naquele tempo, nem padre chegava nas fazendas de meu avô.

As pessoas não eram nem católicos, nem evangélicos, pois a igreja mais próxima ficava a léguas de distância – sem estrada. Minha avó disse que de vez em quando aparecia um padre e casava e batizava todo mundo no atacado. Ia-se embora e ficava a capelinha, onde o povo rezava, misturava com incorporações e clamores com espíritos, de forma que qualquer instruído não saberia definir o que era aquilo: umbanda, quimbanda, candomblé, espiritismo?.... Para minha avó, foi por castigo de Deus, em razão de misturarem o profano e o sagrado, que eles passaram por tanta miséria e fome.

E não era fome de carne, de um pouco mais de arroz e feijão. Era fome de não ter absolutamente nada para comer. Quando chegavam a fazenda, abriam um clarão no meio da mata fechada, amassavam barro e erguiam a casa com vigas de pau-a-pique. As camas eram jiraus cobertos com um pouco de palha e trapos. Minha avó costumava fazer camas muito altas para evitar que as cobras picassem seus filhos. Finalizada a casa, ela partia para a horta e a lavoura de arroz, feijão, milho e mandioca. Mas até que fosse possível colher alguma coisa, teria que se virar com o que trouxe de outra fazenda. E era pouco.

Na maior parte das vezes, vovó saia cantando broto de mato. Fazia um refogado misturado com farinha e dava para os meninos comerem. Ela conhecia muito de plantas, não havia o risco de envenenar seus filhos, mas o que conseguia extrair da mata era amargo. As crianças comiam assim mesmo. Outros recursos eram: pegar passarinho, pescar, encontrar frutas no Cerrado. Não havia muita distância na alimentação do sertanejo e do indígena.

A revolta da minha avó não era contra o governo, a política nacional, o imperialismo americano, era contra essa agonia por mudar e mudar e mudar que acometia meu avô. Mas é preciso entender Chico. Ele olhava para a casinha fincada no nada, a plantação que brotava com dificuldade sem nenhum adubo, os meninos que cresciam sem viço, o cavalo magro e a mata fechada e concluía que o único sentido era mudar novamente. Vovô era um errante. Dali, em cima de um carro de boi, ele podia sonhar e ter esperança em ficar mais próximo da cidade. E a esperança no coração de um sertanejo é mais vital que o alimento.

Vovó teve maleita enquanto mudava. Para seu azar, ainda veio uma chuva, dias e dias de chuva intensa. Ela com febre e tomando chuva. Tremia tanto, que pediu para meu avô parar. Despediu-se dos filhos, pensou que ia morrer. Aguardou os últimos momentos escondida da chuva em baixo do carro de boi. Mas veio o dia, a chuva se foi, e ela continuou seu caminho ao lado do meu avô.

O sertanejo tem uma constituição física mais forte que o citadino. Quero crer que herdei a saúde dos meus avós.